sexta-feira, outubro 01, 2010

Requiescat in Pace

O que é a poesia?
A poesia também poderá ser horror?
A poesia poderá ser escura, obscura, sombria,
Dor, tristeza, morte…

Não há poesia no corpo, sem vida, que se atira à terra,
Que se lança em chamas ao mar?

Não me digam que um homem,
Quando enterra outro homem,
Com as próprias mãos,
Não está a fazer a poesia,
Não está a escrever um poema.
Não me digam que a terra que se tira,
E que se volta a pôr,
Não é encher aquilo que foi absoluto,
Por aquilo que é vazio.
Não me digam que a terra que escorre por entre os dedos,
Não é como a água do rio onde vamos mergulhar.
Não me digam que as lágrimas que caem do rosto de uma vida,
Não são elas um alimento da terra,
Não são elas como um regar de uma flor.
Não me digam que pôr pedra sobre pedra,
Não é construir o altar que abriga as nossas memórias -
Como um porto abriga um barco à deriva.

Poderá isto ser poesia?
Poderá a morte ser cantada?

E se a terra for o sangue do mundo…
E se o caixão que se enterra ficar sobre outro caixão,
E outro caixão em baixo, sobre outro caixão,
E outro caixão…
E ainda outro,
E outro… Até chegar ao centro do mundo.

E se for este o único caminho que resta ao homem
Para alcançar o coração do mundo?

Não estará ele a escrever poesia?

quarta-feira, julho 21, 2010

Casa em Ruínas

Paredes velhas e rachadas
Feridas na alma e na pele
Soalho calcado e pálido
Pisado e sem cuidado
Janelas quebradas
E vidros no chão
Lágrimas caídas
De um rosto em vão
Uma escada serpente
De ferro enferrujado
Degraus doridos
Ossos partidos
Um corpo há muito caducado
Porta entaipada
Tabiques de pesadelo
Pregos que amarram sonhos
Coração que não se solta
E alma que não se desprende
Voz que se cala lá fora
Voz que grita cá dentro

sexta-feira, maio 21, 2010

Há muito que penso na loucura.

Se na sua essência se levanta a guerra
E dorme a paz?
Ou se no seu coração
Se escuta a melodia da lira de Orfeu?
E que som terá a loucura:
Um suspiro ensurdecedor
Ou um grito omisso?

Se a filosofia ensina a ver que as coisas
Não são verdadeiramente coisas;
E se a poesia existe para sabermos que as coisas
São muito mais do que coisas.
Então o que ensina a loucura?
Que quando se olha só se vê o que lá está
E não o que poderia lá estar?
Que não há uma montanha entre a realidade
E o sonho?
Que a linguagem não a serve
E só o sentimento a pode exprimir?

Um dia que a loucura me ache
Quero que esta lucidez me encontre
Para que saiba que me perdi num hoje
Que não foi ontem,
E que nunca será amanhã.

sexta-feira, abril 02, 2010

A moda das calças ao fundo do cu

Um dia quiseram saber qual era o meu estilo…
A que matilha de aperaltados eu pertencia…
Mostrei os dentes,
Amarelados pela raiva de tal inquisição.

Mas porque raio terei eu que ter um estilo?
O meu estilo é não ter um estilo.
É não usar o que todos usam.
É não ser o que todos são.

Mas porque hei-de eu usar uns óculos de massa
Se não tenho qualquer problema em ver
O que está diante de mim?

Mas porque hei-de eu vestir uma camisa,
Com umas calças e uns sapatos a condizer.
Se dentro de mim há tanta coisa que não condiz?

Mas porque hei-de eu ter cores a combinar,
Se todo eu só tenho uma cor?

Mas porque hei-de eu ter as calças ao fundo do cu,
Se o cinto que me obrigam a trazer é tão apertado?

Caramba!
Porque é que eu tenho que estar bem-vestido?
Ou mal-vestido? Ou mesmo vestido?
Se as coisas mais importantes da vida se fazem sem roupa,
Ou sem qualquer preocupação pela roupa.

Eu nunca vi ninguém nascer vestido.
Nem tão pouco vi um morto inquietar-se com o seu vestir.
Nunca vi ninguém preocupado com a roupa no amor.
Mas já vi tirar a roupa à pressa no amor.

E uma vez sem roupa,
Onde é que eles têm o estilo?
Nos óculos de massa?
Nas camisas, nas calças e nos sapatos
entretanto aventados para baixo da cama?

Não, eu não tenho as calças ao fundo do cu.

sexta-feira, março 12, 2010

Na taberna do Abel

A taberna do Abel era muito dada a isto mesmo:
A estas discussões que levam as pessoas fora de si,
Sem elas irem a lado nenhum.

Estava sem a pândega do costume - É certo.
Mas os dois velhos, que encostavam o bandulho ao balcão,
Faziam questão de a encher com os grunhidos e caretas
De dois homens num duelo de espadas.
Mas, este era sem espadas, era sem pistolas.
As armas...
As armas eram os murros no balcão, os perdigotos,
E as onomatopeias de dois animais irados que
Se encaram no meio da natureza.

Esbracejavam - como se tivessem a orientar o tráfego.
Mas o único trânsito naquela taberna eram os seus pensamentos,
Que oram vinham da esquerda,
Ora vinham da direita.
E todos eles chocavam no cruzamento.
Embatiam uns nos outros e nenhum ficava em pé.
Não concordavam que Alfama está depois do S. Jorge e antes do Tejo.
O único aceno de concórdia dos dois:
Era o abanar de cabeça para cima e para baixo
Cada vez que levavam ao fundo
Uma medida da aguardente do Abel.
Batiam rudemente o fundo do copo no balcão,
E repetiam num tom licoroso e áspero:
“Boa pinga, Abel”!

A páginas tantas,
Já o fumo dos mata-ratos os escondia,
E só palavras de lá saiam…
Um falava de um certo Manel Perdigueiro,
Que cantava os melhores fados de Lisboa.
O outro atirava com um tal de Zé Estorninho,
Que era o rouxinol das casas de fado do bairro dele.
Um dizia que nunca houve um jogador da bola
Como o Rui Cagadinha.
O outro ripostava com os remates do Jorge Papagaio,
Que eram autênticos tiros de canhão.
Um recitava uns versos de um Rogério Canela,
Dizendo sempre que era um poeta tão grande
Que ele nem sabia quão grande ele era.
O outro cantava umas rimas de um tal Francisco Corisco,
E dizia ele que eram rimas tão bem rimadas
Que depois de ditas nunca mais eram olvidadas.

Nesse mesmo instante,
Um homem bem aprumado, de traços baixos,
Cara pequena, óculos tortos sobre o nariz,
E um chapéu sem vida que lhe roubava o coruto da cabeça,
Irrompe pela taberna adentro e fá-los suspender a altercação.

E no momento em que o homem levou o santo graal à boca:
Uma claridade maquinal entrou na taberna sem pedir licença.

Os velhos atiraram-se ao chão,
Como soldados que debaixo do fogo inimigo
Se aventam para as trincheiras.

Mas não era perigo, nem trovoada.
Era uma fotografia tirada à pressa para apanhar
O copo na mão do intrigante homem ao balcão.

segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Às vezes...

Às vezes penso em mim e no que sou.
Às vezes penso em todos nós e no que somos.

Pergunto-me:
Se o mundo pára quando morremos?
E por quanto tempo parará o mundo quando eu morrer?
Quando tu morreres?

Às vezes penso que somos uma máquina.
Vejo as rodas,
Vejo a corrente que as envolve,
Vejo as alavancas,
Vejo os operários que vêm só porque somos a máquina
Que têm que olear.

Às vezes até vejo a fábrica
Vejo o mundo.

Mas, às vezes…
Às vezes não vejo máquina alguma.
Não vejo operários nenhuns.

Às vezes só vejo uma roda,
Uma corrente.
Às vezes vejo que sou só um dente dessa roda;
E quando um dente desaparece a roda não pára,
A corrente não pára.
A fábrica não pára.

O mundo não pára.

sexta-feira, janeiro 15, 2010






O mundo aguça-me a curiosidade.
As pessoas despertam-me a mais absoluta indiferença,
A mesma que elas têm por mim.

Quando as escuto não as quero ouvir,
Aceno com a cabeça em sinal de concordância,
Mas não acredito em nada.
Sinto o mais total desapego pela mundanidade do mundo.

Tenho sempre vontade de estar no outro lado do passeio
Quando sei que vou encontrar velhos conhecidos.
Mas nunca atravesso.
Prefiro anuir a uma conversa de superfície
A ter que atravessar pelos perigos de uma estrada.
É uma ausência de coragem que me percorre todas as veias
Do meu corpo.

Por vezes, esforço-me por passear na vida,
Por caminhar ao lado das pessoas,
Por discutir com elas a injustiça da vida,
A muita ou pouca chuva que cai,
O muito ou pouco calor que está…
Mas subitamente me assola a mais terrível tempestade
De tédio, indiferença, tristeza, abulia…
E então recolho-me a mim próprio,
Encerro-me na minha própria carapaça.

E rodeio-me de palavras ditas a mim próprio.

Contemplo o mundo e a sua quotidianidade,
Querendo como nunca estar vivo
Para estar nele por inteiro,
E não fazer parte dele por nada.

É assim que a felicidade atraca em mim
Como um navio numa utopia longínqua.
E o primeiro salto que dou para pisar terra,
É o primeiro passo que dou para alcançar um
Sonho.