sexta-feira, julho 25, 2008

Uma Bica

Sentei-me à porta de um café do Rossio,
Numa tarde soalheira de primavera;
Numa daquelas tardes que passam
Sem se dar conta que passam.

O sol caía sobre as mesas de vidro.
Mas o vento assobiava
E esgueirava-se pelas ruas,
Vinha desaguar à praça.
As pessoas dobravam-se
Pela força da corrente do próprio vento,
Quase que se ajoelhavam
Perante o petrificado Pedro.

O olhar do sol era intenso,
O grito do vento era barulhento,
Mas o empregado ouviu o pedido –
Era uma bica, nem cheia, nem curta,
Nem escaldada, nem fria.
Era uma bica assim – assim –
E lá veio a bica.
Não tinha nata mas tomei-a de um trago só,
Porque é assim que bebo tudo:
Um trago só.
(Nunca penso no que as coisas são,
Somente penso no que elas foram…)

Mas a bica não tinha nata,
E uma bica sem nata,
É um absinto sem álcool,
Quando se bebe não nos fica a estrelar
O céu-da-boca.

Acenei ao empregado para lhe dizer
Que a bica não tinha nata.
Mas quando ele chegou não disse,
Não quis embaraçar quem tirou
Uma bica sem nata.
Porque um café que se preze
Tira uma bica com nata.
Mas ao pensar neste dogma
Enchi o peito
Da mais inquebrável ousadia,
E acenei ao empregado para lhe dizer
Que a bica não tinha nata.

Veio o empregado mas também veio um amigo.
Pedi ao empregado:
Uma cadeira para este amigo, por favor.
Qualquer palavra que se troque com um amigo
Faz esquecer qualquer bica sem nata.

Estica-me, este amigo, três dedos
Para me dar um aperto de mão.
E não me olha nos olhos.
Diz-me que está com pressa,
Que tem que ir.
Tão depressa lhe dei as boas-vindas
Como as boas-idas…
Não lhe disse,
Mas não gosto que não me apertem a mão.
Ora um aperto de mão,
É um aperto de mão.
A força de um aperto de mão é igual
À soma do respeito mais a afeição.
Eu apertei-lhe a mão.

Enfim, resfriou a tarde com o passar da hora.
Acenei ao empregado
Para lhe pedir a conta e um lápis.
Paguei mas deixei um escrito:

Não gosto de uma bica sem nata.

quarta-feira, julho 09, 2008

"Ecce Homo"



Fecho a porta
A mim mesmo.
A natureza morta
Planto-a no meu leito,
Assim em segredo,
Para que esconda cá dentro o medo
De saber que o que recuso e aceito:
É o cessante germinar de um coração
Imperfeito!

(Já sinto os ossos a quebrarem
E os nervos a secarem.)
Abandono então as ruínas do meu ser
E vejo a minha carne apodrecer.

E eis-me aqui nu e cru,
No mais puro estado natural
Que já findou.
Mas sabedor, agora,
Que a pobre doente planta que murchou
Era, afinal, a mais sã e dura raiz
Que Deus na terra plantou.