sexta-feira, março 12, 2010

Na taberna do Abel

A taberna do Abel era muito dada a isto mesmo:
A estas discussões que levam as pessoas fora de si,
Sem elas irem a lado nenhum.

Estava sem a pândega do costume - É certo.
Mas os dois velhos, que encostavam o bandulho ao balcão,
Faziam questão de a encher com os grunhidos e caretas
De dois homens num duelo de espadas.
Mas, este era sem espadas, era sem pistolas.
As armas...
As armas eram os murros no balcão, os perdigotos,
E as onomatopeias de dois animais irados que
Se encaram no meio da natureza.

Esbracejavam - como se tivessem a orientar o tráfego.
Mas o único trânsito naquela taberna eram os seus pensamentos,
Que oram vinham da esquerda,
Ora vinham da direita.
E todos eles chocavam no cruzamento.
Embatiam uns nos outros e nenhum ficava em pé.
Não concordavam que Alfama está depois do S. Jorge e antes do Tejo.
O único aceno de concórdia dos dois:
Era o abanar de cabeça para cima e para baixo
Cada vez que levavam ao fundo
Uma medida da aguardente do Abel.
Batiam rudemente o fundo do copo no balcão,
E repetiam num tom licoroso e áspero:
“Boa pinga, Abel”!

A páginas tantas,
Já o fumo dos mata-ratos os escondia,
E só palavras de lá saiam…
Um falava de um certo Manel Perdigueiro,
Que cantava os melhores fados de Lisboa.
O outro atirava com um tal de Zé Estorninho,
Que era o rouxinol das casas de fado do bairro dele.
Um dizia que nunca houve um jogador da bola
Como o Rui Cagadinha.
O outro ripostava com os remates do Jorge Papagaio,
Que eram autênticos tiros de canhão.
Um recitava uns versos de um Rogério Canela,
Dizendo sempre que era um poeta tão grande
Que ele nem sabia quão grande ele era.
O outro cantava umas rimas de um tal Francisco Corisco,
E dizia ele que eram rimas tão bem rimadas
Que depois de ditas nunca mais eram olvidadas.

Nesse mesmo instante,
Um homem bem aprumado, de traços baixos,
Cara pequena, óculos tortos sobre o nariz,
E um chapéu sem vida que lhe roubava o coruto da cabeça,
Irrompe pela taberna adentro e fá-los suspender a altercação.

E no momento em que o homem levou o santo graal à boca:
Uma claridade maquinal entrou na taberna sem pedir licença.

Os velhos atiraram-se ao chão,
Como soldados que debaixo do fogo inimigo
Se aventam para as trincheiras.

Mas não era perigo, nem trovoada.
Era uma fotografia tirada à pressa para apanhar
O copo na mão do intrigante homem ao balcão.