quinta-feira, março 27, 2008

"Dubito Ergo Sum"

Olho-me no espelho e vejo-me poeta.
E então sinto que sei tudo,
Sinto que sei o que sou,
Sinto que sou um poeta.
Mas quando saio à rua – a realidade abate-se sobre mim –
E percebo que as certezas, que tenho do que sou,
São nenhumas.
Sou um homem entre muitos homens.

Procuro respostas no agitar das árvores,
No chão que piso,
No rosto das meninas que toco,
No sorriso dos velhos a quem cumprimento,
No céu que anseio almejar,
Na vida que me ensurdece,
No espectáculo do mundo que me cega e entorpece.

Tento encontrar-me.
Tento encontrar-me nas rugas de um velho edifício;
Tento, por tudo, encontrar reflexos de mim nas ondas
Que me desgastam como um solitário rochedo.
Procuro escutar ecos da voz que tive
No uivo do vento, que me descobre o rosto
Que não possuo.
Anseio por encontrar resquícios das lágrimas
Que jorrei na calçada molhada da chuva.

Investigo-me na vida,
Sabendo, no entanto, que só encontrarei o que sou
Na morte.

Perco-me nos leitos do pensamento,
Escondendo-me o mais que posso da minha realidade.
E é, então, que cansado me vergo,
E me contento com as coisas,
Que se tornam coisas diante dos meus olhos.
Vejo e não intervenho.

Tento pôr-me de fora mas sou arrastado para dentro;
Através da gargalhada de uma criança
E do riso sincero de um avô.
Tento ser indiferente aos cisnes do lago
Mas não deixo de ouvir o seu chapinhar.
Tento não sentir um abraço de uma avó ao neto
Mas sinto.
Tento não arrastar o olhar para a similitude de dois irmãos
Mas arrasto.
Tento não invejar o beijo encerrado de dois namorados
Mas invejo.
Tento não tactear a realidade do banco que me suporta
Mas não resisto.
Tento não sentir a sempre ingénua suavidade da relva aparadinha na palma da minha mão
Mas não ouso não sentir.
Tento não me encantar pela cor do céu
Mas dou-me completamente.
Tento fugir de tudo isto
Mas não consigo deixar de querer viver tudo isto.

Procuro-me prostrado perante a circularidade do mundo,
Mas não sei se é aí que estou.
Forço a minha mão a não escrever sobre o que serei,
Pois o que sou está no andar
Deste carrossel momentâneo da vida.